segunda-feira, 26 de junho de 2017

Algumas Considerações sobre o Tema da Retórica no Górgias de Platão


Luciana Maria Azevedo de Almeida
lmaalmeida@bol.com.br
Pós-Graduação em Filosofia, UFMG


1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Nos diálogos Fedro e Górgias de Platão, encontramos uma ampla discussão relacionada ao problema da retórica. De maneira geral, os estudiosos da filosofia platônica atribuem a estes diálogos preocupações e objetivos distintos no tratamento da retórica. As leituras do Górgias normalmente destacam o empenho de Platão em atacar e refutar a retórica sofística. Já os estudos dedicados ao Fedro ressaltam uma mudança na perspectiva de investigação, uma vez que é neste diálogo que Platão nos apresenta o discurso-programa de uma retórica filosófica. À diferença do Górgias, no Fedro, a retórica seria finalmente merecedora de um tratamento positivo1. Ora, no que diz respeito ao Górgias, o aspecto crítico não parece esgotar a abordagem da retórica. Nele também encontramos explicitados alguns parâmetros para definir uma retórica aceitável de acordo com a perspectiva platônica.



Neste trabalho pretendemos rever alguns traços principais da abordagem platônica do problema da retórica, desenvolvida tanto no Górgias quanto no Fedro.
Assim, na primeira seção deste trabalho, faremos uma pequena exposição da interpretação que nos parece consensual do problema da retórica em Platão, cuja
característica principal é separar a abordagem deste problema em dois momentos: refutativo e programático, situados respectivamente no Górgias e no Fedro.
Pretendemos indicar que esta perspectiva tende a ser simplista, e neste caso merece ser revista, pois, no que se refere ao Górgias, ela acaba por mitigar ou mesmo
desconsiderar o esforço de reabilitação da retórica, que se verifica já neste diálogo. Na segunda seção, faremos algumas considerações relativas à estrutura do Górgias, com o intuito de mostrar que a abordagem da retórica, neste diálogo, obedece, tanto quanto no Fedro, a uma dinâmica de crítica e reestruturação, sendo apropriado, portanto, destacar, juntamente com a crítica da retórica sofística, a iniciativa de delimitar uma autêntica retórica.

1.2. OS DOIS DIÁLOGOS SOBRE A RETÓRICA: O ‘GÓRGIAS’ E O ‘FEDRO’
O Górgias e o Fedro pertencem a períodos diferentes da obra platônica2. O Fedro é normalmente situado no grupo dos diálogos da maturidade, sendo, assim, bem
posterior ao Górgias, que é provavelmente o último diálogo composto por Platão em sua juventude. Portanto, os diálogos são separados por um período de tempo
considerável. Este fato é relevante, considerando-se que o Fedro é provavelmente
posterior à elaboração e exposição da “Teoria das Idéias”, no Fédon e na República,
principalmente3. Neste caso, a retórica filosófica pôde ser elaborada em conformidade
com tal teoria. Ainda assim, nos parece discutível a iniciativa de postular uma nítida
correspondência entre os momentos refutativo e programático na análise da retórica e os
dois grandes diálogos nos quais este tema é abordado detalhadamente.
A intolerância platônica para com a retórica é freqüentemente ressaltada nos
estudos dedicados ao Górgias, e mesmo naqueles que investigam o tema da retórica em
geral4. De fato, no Górgias, a retórica é tratada com um furor e rigidez críticos
indisfarçáveis. E, uma vez que a retórica é uma atividade estreitamente associada à
sofística, afinidade que transparece no próprio personagem que dá título à obra,
compreendem-se as razões desta intolerância5. No Górgias, o debate tem início com as
tentativas de Górgias de argumentar em favor da sua definição da retórica como tékhne.
Górgias define a retórica como a arte de produzir a persuasão, uma persuasão que,
3A cronologia dos diálogos platônicos é sempre problemática. Grande parte dos comentadores localizam o Górgias no grupo dos diálogos da juventude. Todavia, algumas características do Górgias são anômalas em relação aos demais diálogos deste período, levando alguns intérpretes a conjecturar que se trata de um diálogo de ‘transição’, o último diálogo composto por Platão neste período: o objeto da pesquisa definicional é atípico em relação aos diálogos desta fase - no Górgias, interessa examinar a definição de uma atividade - a retórica, à diferença dos demais, que se preocupam em analisar definições de virtudes morais; o diálogo é mais extenso, e o teor das afirmativas de Sócrates é positivo - considerações sobre o método da refutação, bem como estabelecimento de doutrinas morais - dando ao Górgias uma feição ‘mais dogmática’ em relação aos outros diálogos do mesmo período. Cf. DODDS, E.R.. Gorgias. A revised text with introduction and commentary by E. R. Dodds. Oxford: Claredon Press, 1959, p. 20. No caso do Fedro, há um consenso de que este diálogo pertence ao período da maturidade, Cf. ROSS, W. D. Plato's theory of ideas. Oxford: Clarendon Press, 1951, p. 28.

Platon critique littéraire. Paris: Klincksieck, 1960, p. 276). Algumas passagens do Górgias ressaltam a contudo, é fundada na crença e na opinião. Estabelecendo uma dupla analogia, cujos
termos fixos são, de um lado, corpo/alma, que são os objetos, e de outro, saúde/beleza,
que são os fins aos quais se destinam a preparação dos objetos (o corpo e a alma),
Sócrates fornece dois quadros analógicos paralelos, um sendo o simulacro do outro,
através dos quais se separam as autênticas técnicas e suas versões paródicas - as
empeiríai. Medicina e ginástica, artes que visam o cuidado do corpo, se distinguem da
culinária e da cosmética, práticas que procuram apenas aquilo que é aprazível e
agradável ao corpo. Justiça e legislação destacam-se de suas contrapartidas irracionais,
retórica e sofística, no que se refere à alma. A retórica é, assim, excluída do rol das
artes, e denunciada como uma rotina, uma prática irrefletida. Seu gênero, tanto quanto a
culinária, a cosmética e a sofística, é o da adulação. O Górgias mostra, portanto, que a
retórica sofística está longe de ser uma autêntica tékhne.
Este desenvolvimento argumentativo parece sugerir que o objetivo do Górgias,
ao tematizar a retórica, limita-se a investigar sua versão sofística, com o intuito
exclusivo de refutá-la. O tratamento da retórica no diálogo atenderia à preocupação em
denunciar o aspecto aparente da competência discursiva sofística, evidenciando seu
caráter irracionalista e imoralista6.

O período que separa o Górgias do Fedro, teria permitido a Platão fazer uma
espécie de revisão de sua posição. A intransigência com relação à retórica que se
observa no Górgias seria progressivamente atenuada, dando as condições para que a
intimidade entre retórica e sofística. Por exemplo, em 520b: “(...) entre la sophistique et la rhétorique,
tout é pareil, ou presque (...)” (CR, p. 214). Retórica fosse submetida a uma reforma progressiva. As etapas deste processo seriam verificadas nos diálogos Apologia de Sócrates, Mênon e Banquete, nos quais é possível constatar a utilização de recursos e artifícios retóricos, que denunciariam uma maior
receptividade do autor para com a retórica7.

Como resultado final desta assimilação progressiva da retórica encontraríamos
o discurso programa do Fedro, apresentado no trecho compreendido entre os passos
e. Nesta passagem, Platão nos oferece uma exposição detalhada do que
seria a autêntica retórica. Em coerência com os padrões de racionalidade e moralidade,
Platão define o objeto, os métodos e a finalidade desta autêntica tékhne, digna do
filósofo e a serviço da filosofia. De posse de tais resultados, a retórica é definida como
psykhagogía, arte cuja tarefa é dar expressão persuasiva às verdades filosóficas. No
Fedro, a retórica é recuperada de maneira a se tornar compatível com a atividade
filosófica.

Procuramos fazer esse breve esboço do que seriam os dois pólos da
investigação platônica sobre a retórica a fim de lançar algumas dúvidas quanto à sua
propriedade. Ressaltar exclusivamente o caráter de denúncia do Górgias, limitando seu
objetivo ao tematizar a retórica à refutação da retórica sofística, por um lado, e, por
outro, localizar elementos positivos e de caráter construtivo no tratamento da retórica
apenas no Fedro, nos parece ser o resultado de uma visão estigmatizada do Górgias. Ao
que tudo indica, este tipo de polaridade limita a compreensão de ambos os diálogos.
Acreditamos, ao contrário, que em ambos os diálogos verificam-se ataques à retórica
sofística, como também elementos de um discurso-programa do que seria uma retórica
7Para DIÈS, A. Autour de Platon: essais de critique et d'histoire. Paris: Gabriel Beauchesne, 1927, p.
408-432, estes três diálogos são exemplos do que ele chama ‘transposições parciais’, isto é, a utilização de recursos retóricos ou imitação deliberada do estilo dos retores por Platão. Tais transposições seriam preliminares à ‘transposição total’ do Fedro, ou seja, a transformação da retórica sofística em epistêmica. aceitável. Nos parece que a crítica e a refutação e a posterior reformulação e
reestruturação fazem parte de uma mesma dinâmica, cujos pólos não devem ser
considerados isoladamente, tampouco localizados num só diálogo. Desta forma,
insistimos na possibilidade de identificar um traço comum na investigação da retórica
nos dois casos. Este elemento comum estaria relacionado com a estratégia de
investigação.

É claro que as diferenças entre o Górgias e o Fedro são consideráveis. O ponto
de partida na abordagem da retórica não é o mesmo, o desenvolvimento da investigação
remete a temas conexos distintos, até mesmo os recursos argumentativos utilizados em
cada um deles são dependentes do contexto de cada diálogo. Além das mencionadas
diferenças argumentativas, é importante atentar para o fato de que no Fedro o problema
da retórica pode ser abordado à luz da “Teoria das Idéias”, permitindo soluções mais
afirmativas na caracterização da autêntica retórica. Mesmo assim, nos parece que, tanto
no Górgias, quanto no Fedro, a investigação é condicionada por duas preocupações
básicas: num primeiro momento, trata-se de submeter a retórica corrente, tal como é
praticada pela sofística, a uma crítica capaz de verificar se esta prática é condizente com
os padrões racionais; feito isto, a investigação poderá se empenhar em fornecer os
elementos necessários para reformar a retórica, adaptando-a aos parâmetros e exigências
aos quais devem obedecer toda atividade racional.
Tendo em vista esta dinâmica, poderemos observar que no Górgias verifica-se a
preocupação em rebaixar a retórica praticada pelos sofistas e denunciar
sistematicamente a fraqueza intelectual e impostura moral de seus representantes, mas
que, paralelamente à recusa e refutação da retórica representada por Górgias e seus
pupilos, Sócrates reserva um lugar para uma retórica condizente com os padrões de racionalidade e moralidade, delineando uma concepção positiva da retórica. No
Górgias, Platão distingue duas classes de retórica: aquela praticada pelos sofistas,
denunciada como prática demagógica e servilismo adulador; e aquela que se preocupa
em produzir uma melhora na alma dos cidadãos, zela pela justiça e promove a
sabedoria. A primeira refere-se à retórica gorgiana e é posteriormente definida por
Sócrates como simulacro de uma parte da política, a saber, a justiça. A segunda seria um
esboço da retórica filosófica, cuja tarefa, colocar a persuasão a serviço da justiça, é
limitada à atividade política do filósofo. Desta forma, o Górgias irá recuperar o controle
filosófico da retórica, se posicionando contra a usurpação sofística, reconduzindo a
política e com ela a retórica ao controle do filósofo. Portanto, se é legítimo falar em uma
‘boa’ retórica, ela deve ser destacada também neste diálogo.

Da mesma maneira, o teor crítico do Fedro não deve ser atenuado em favor de
seu caráter programático. Neste diálogo, a investigação se desenvolve a partir do
discurso de Lísias, lido pelo próprio Fedro a Sócrates. A partir deste discurso, Platão irá
promover uma desconstrução minuciosa da retórica sofística, estabelecendo em seu
lugar a autêntica retórica - a filosófica. O objetivo é mostrar que uma retórica que
pretende produzir a persuasão, dispensando para isto o conhecimento do assunto,
limitando-se em reproduzir, com uma vestimenta incrementada, a opinião que agrada à
maioria, não passa de uma pseudo técnica de ilusionismo, de mera adulação. Os dois
discursos de Sócrates sobre o tema do amor, confeccionados a partir do discurso de
Lísias, e o mito de Teute parecem especificar três pontos nos quais a crítica é
focalizada: o primeiro discurso de Sócrates, uma paródia do discurso de Lísias, irá
atacar a retórica sofística do ponto de vista metodológico, mostrando que, mesmo no
que se refere à simples forma do discurso, os discursos produzidos são de baixa qualidade8. O segundo discurso de Sócrates recua a perspectiva crítica: a questão não
tange mais à forma, mas ao conteúdo do discurso de Lísias - o amor. Finalmente o
terceiro ponto, abordado através da imagem mítica de Teute, irá denunciar o caráter
acessório da escrita, sua ambigüidade como phármakon, fazendo dela o representante
emblemático para um certo uso do lógos: aquele que visa somente o efeito e o
espetáculo. Nada mais nada menos que o lógos sofístico. Se a retórica é a arte de
produzir bons discursos, o Fedro irá mostrar que a sofística não é versada nem mesmo
nesta arte, porque a retórica, tal como é concebida e utilizada por ela, está longe de ser
um saber organizado, metódico e coerente.

Se no Fedro parece claro que Platão se opõe a uma certa espécie de retórica, a
praticada pelos sofistas, e não à retórica como um recurso de enunciação do qual o
filósofo poderá lançar mão quando se fizer necessário, o mesmo deve ser dito com
relação ao Górgias. Assim, julgamos pertinente afirmar que o Górgias já apresenta uma
concepção positiva da retórica. A ‘boa’ retórica é uma das dimensões da política, sendo
uma espécie de recurso acessório que o filósofo poderá utilizar quando julgar
necessário9. irracional, e, no que se refere ao desenvolvimento do discurso, o indivíduo apaixonado é caracterizado como escravo do desejo, estado este que, tanto quanto no discurso de Lísias, é apresentado como pernicioso, doentio e nocivo à razão. É ainda revelador o fato de que Sócrates omite a conclusão de seu discurso, por ser a mesma do discurso de Lísias, deixando sua fala inacabada. Embora Sócrates se aproprie abertamente do discurso de Lísias, o seu já revela uma superioridade em relação ao anterior: a escolha que ele irá sugerir é amparada no exame metódico da questão. Para aconselhar, Sócrates frisa a necessidade de se conhecer o assunto em questão. Se a questão é saber se o amor é preferível ou não, é preciso primeiro defini-lo, para depois, com base na definição estabelecida, saber se ele é prejudicial ou benéfico. Desta forma, Sócrates aceita os pressupostos assumidos por Lísias implicitamente em seu discurso, com a diferença de que ele os torna manifestos pela definição. Na medida em que faz isso, Sócrates marca a superioridade estilística de seu discurso em relação ao discurso de Lísias, exibindo um domínio muito maior na disposição dos argumentos e no encadeamento do discurso.


Poderíamos sintetizar, distinguindo na reflexão platônica sobre a questão da
retórica dois eixos principais, presentes nos dois diálogos mencionados: 1) a denúncia
do caráter irracional da retórica sofística e sua rejeição como pseudo-técnica; 2) o
estabelecimento de uma nova retórica, amparada nos parâmetros de racionalidade e
discursividade, a retórica filosófica. A fim de concluir, remetemos novamente aos
diálogos, insistindo que no Górgias a retórica é tratada com uma certa veemência
crítica, o que não deve ofuscar o que seria o esboço de um discurso-programa
posteriormente levado a cabo no Fedro; do mesmo modo, no Fedro, o discursoprograma
não deve camuflar as passagens em que Platão promove a crítica da retórica
sofística.

1.3. A DINÂMICA DO ‘GÓRGIAS’
A hipótese de que uma mesma dinâmica de crítica e reestruturação organiza
ambos os diálogos relativos à retórica permite compatibilizar alguns aspectos formais
do Górgias, tais como a unidade temática, o excessivo revezamento de interlocutores, a
dramaticidade do diálogo, entre outros.
Como uma boa parte dos diálogos de Platão, o Górgias tem suscitado as mais
variadas controvérsias. Divergências quanto ao tema, objetivo, e unidade do diálogo
ocuparam muitos de seus intérpretes10. De fato, o Górgias é um diálogo especialmente
sendo a oratória política apenas uma de suas modalidades. E que nem mesmo o termo que define a
retórica no Fedro aparece no Górgias - a psykhagogia: “a arte de conduzir as almas por meio das
palavras” 261a.

rico: ele aborda temas epistemológicos, éticos e políticos, discutidos, por sua vez, por
três personagens que se revezam no papel de interlocutores de Sócrates, acrescido ainda
de uma riqueza dramática que é constantemente observada. O exame de temas
aparentemente diversos, tais como a definição da retórica enquanto tékhne, a distinção
entre ciência e crença, a relação entre as artes, o prazer e o bem, o valor da justiça, as
conseqüências da identificação entre o prazer e o bem, e, finalmente, qual gênero de
vida deve ser preferido, parece deixar dúvidas quanto ao problema que realmente
importa investigar. Qual é a questão de fundo que norteia a articulação de temas tão
diversos? Por que a presença de três interlocutores e por que eles não participam da
discussão na mesma proporção? Qual o sentido das freqüentes digressões de Sócrates,
em desobediência às prescrições de concisão que ele próprio dirige aos seus
interlocutores? Por que tanto rigor crítico e requinte dramático? Tais são algumas das
questões que fazem a perplexidade de alguns intérpretes. Tudo indica que o Górgias não
se abre facilmente à interpretação. Estas dificuldades são freqüentemente atribuídas às
características formais e literárias do diálogo. Reclama-se dos excessos da composição
literária, imputando à ‘afetação dramática’ do diálogo a responsabilidade de ocultar o
desenvolvimento das idéias. Outros insistem no desequilíbrio da composição literária,
julgando-o característico de uma obra composta por Platão em sua juventude.
Certamente, o Górgias pertence ao período da juventude. Um consenso aponta nesta
direção. De qualquer forma, não nos parece legítimo afirmar e ainda justificar a
‘inferioridade literária’ do Górgias, apelando para sua data de composição. Se o
Górgias se apresenta como uma obra ‘mal equilibrada’ e ‘excessivamente dramática’,
estes aspectos deverão ser esclarecidos em coerência com razões internas ao diálogo, as
quais conferem uma ordem necessária ao seu desenvolvimento. Desprestigiar o diálogo
devido a um destes aspectos é postular o divórcio entre a apresentação e a sucessão das
idéias, negligenciando o essencial: a autonomia, organicidade e unidade de cada um dos
diálogos platônicos. Acreditamos que, ao contrário, todo o trabalho de interpretação
deverá ser dirigido no sentido de apreender a temática filosófica que organiza a
sucessão dos enunciados, esclarece a estrutura do diálogo e lhe confere unidade.
Portanto, a unidade e autonomia do diálogo não devem ser colocadas em questão. É o
que assumimos como pressuposto hermenêutico de nossa presente abordagem.
O dinamismo da estrutura do Górgias é freqüentemente ressaltado11. Em todo o
diálogo, dois temas predominam e a discussão alterna regularmente entre eles: os temas
da retórica e da justiça. Diante desta dupla temática, observa-se uma tendência em
ressaltar um dos temas em detrimento do outro. Ora, o objetivo do diálogo é expresso
pela primeira vez em 487e: “(...) o que deve ser um homem, a qual trabalho ele deve se
entregar, e até que ponto, na sua juventude e na sua velhice” e é reafirmado logo
depois, em 500c: “trata-se de saber qual o gênero de vida devemos adotar (...)”12.
Portanto, o objetivo manifesto do Górgias é saber qual a melhor maneira de conduzir a
vida. De fato, a literalidade do texto não deixa dúvidas quanto ao teor moral da
investigação. O que não autoriza, entretanto, que o tema da retórica seja relegado ao
segundo plano do diálogo, visto como um simples pretexto para a abordagem de um
assunto mais sério: a questão de como conduzir a vida na busca da felicidade.


Se o título do diálogo ostenta o nome de um retor ilustre - Górgias, há boas
razões para acreditar que, mesmo que a reflexão sobre a retórica não ocupe a íntegra do
diálogo, ela tem um papel decisivo e não negligenciável na unidade do mesmo. Uma
pequena resenha do desenvolvimento do diálogo poderá justificar essa pressuposição, e
mesmo decidir sobre a questão.

No prólogo do diálogo 447a-449c, Sócrates explicita seu interesse por Górgias.
À diferença dos demais, que se contentam em assistir a uma exibição (epídeixis) das
habilidades retóricas de Górgias, Sócrates o convida a dialogar (dialégesthai). Ele
manifesta sua intenção claramente: estabelecer um diálogo com Górgias a fim de saber
“qual a potência (he dýnamis) de sua arte (tes tékhnes)” 447c. O prólogo fornece,
portanto, o ponto de partida da investigação. Na frase em que enuncia seu objetivo,
podemos antecipar duas questões que darão o tom a boa parte do diálogo: 1) verificar o
que Górgias entende por ‘arte’ e em seguida 2) determinar se a retórica pode realmente
reivindicar este estatuto. Paradoxalmente, Górgias, figura emblemática13 de uma retórica
amplamente praticada e alardeada à época de Platão, fracassa em sua argumentação,
13Insistimos na função paradigmática de Górgias na investigação da retórica. Com isso, pretendemos
evitar os dois riscos numa abordagem dos diálogos platônicos que nos parecem extremos: o da excessiva confiança na caracterização platônica de Górgias, fazendo coincidir o desempenho do personagem com seu correlato historicamente determinado, ou, ao contrário, dissociar o correspondente histórico do personagem do diálogo, pressupondo de antemão a inverosimilhança do mesmo, porque submetido ao diálogo platônico. Antes de se tratar de Górgias, tal como ele é historicamente conhecido, trata-se de Górgias, personagem de um diálogo de Platão, e que de acordo com as exigências internas deste diálogo assume determinada feição. Contudo, dissociá-lo de Górgias e de suas doutrinas seria subestimar o gênio de Platão, que, como tal, empenhou-se em dar formulação a uma problemática à qual ele era sensível e preocupado em superar. Ao assumirmos esse pressuposto de leitura, não pretendemos submeter Platão às exigências doxográficas que lhe são estranhas, privilegiando a questão da fidedignidade do Górgias como fonte doxográfica, tarefa ocasionalmente desempenhada pelos diálogos platônicos, mas que, entretanto, não constitui sua primeira preocupação. Embora não queiramos postular a coincidência entre o Górgias personagem desta primeira parte e o Górgias histórico, e aqui reincidimos sobre este ponto, o fato é que há uma notável afinidade entre a maneira como o Górgias platônico caracteriza aqui a retórica e as
posições defendidas por Górgias em seu Elogio de Helena, como observou GUTHRIE, op. cit. p. 277):
“Sólo tenemos que añadir aquí que las opiniones atribuidas a Gorgias se correspondem exactamente con las expresadas en su propia Helena”.

logo nas primeiras páginas do diálogo14. Sócrates aponta para uma contradição,
deixando clara a inconsistência do pensamento de Górgias 461a.
Depois de Górgias, seguem-se Polo e Cálicles, que o substituem na função de
interlocutores de Sócrates15. O diálogo ganha em tensão dramática e as críticas de
Sócrates se tornam cada vez mais mordazes. Dialogar se torna cada vez mais difícil. As
prescrições do método dialético se multiplicam no decorrer do texto. A docilidade de
Górgias em responder a Sócrates contrasta com a impertinência de Polo ou a arrogância
de Cálicles. Tais características nos parecem sintomas de uma verticalização crescente
no tratamento do tema, que se deixa entrever na medida em que paralelamente cresce a
inaptidão dialética e a debilidade moral dos sucessores de Górgias - Polo e Cálicles.
Verifica-se, portanto, que concomitante à troca dos interlocutores estabelece-se um
aprofundamento crítico, no qual as questões atingem maior radicalidade, ampliando o
horizonte contemplado pela discussão. Assim, no andamento do diálogo verifica-se que
o ponto de partida do debate - o exame de uma atividade: a retórica – não deve ser
apenas considerado como uma atividade determinada, pois pretende possuir uma
abrangência bem maior, envolvendo uma certa representação do saber e, o que é ainda
mais sério, uma visão de mundo.

Ora, vê-se que a questão da retórica é bastante complexa. Não se trata
simplesmente de uma técnica ensinada e praticada. Esta habilidade fundamenta-se em posições assumidas com relação não só à epistemologia, mas à ontologia, à ética, à
política. Portanto, a critica de Platão à retórica corrente, praticada pelos sofistas,
evidencia não só uma divergência quanto à maneira de conceber uma técnica particular,
uma divergência que seria de natureza exclusivamente epistemológica, mas é, antes de
mais nada, a recusa em aceitar a retórica como sistema doutrinário alternativo e
pretensamente superior ao epistêmico, tal como pretendiam os sofistas. Por isso,
desarticular a retórica sofística é condição necessária para a possibilidade da filosofia.
À luz destas considerações, podemos apreender o sentido da ferocidade crítica
do Górgias, tão freqüentemente alardeada e denunciada. Mais que um ataque dirigido a
Górgias ou à retórica por ele representada, o Górgias é um diálogo cuja dimensão
crítica ganha inteligibilidade quando se percebe o caráter, por assim dizer, “militante”
do diálogo. A preocupação em promover a crítica da retórica difundida e praticada por
seus contemporâneos, constante em todo o diálogo, não deve ser justificada apenas
pelas supostas intenções polêmicas de Platão contra seus reconhecidos adversários.
Deve-se investigar a natureza da retórica, submetendo-a um exame crítico que irá
desarticulá-la ponto a ponto e, nesse sentido, a presença dos vários temas pode ser
entendida como uma versatilidade de enfoques que garantem a amplitude da abordagem
do objeto em questão. Por outro lado, se o trabalho de desmonte crítico é intercalado por
sucessivas defesas da filosofia, percebe-se, então, que se trata sempre de ressaltar o
valor e a importância da atividade filosófica. Nesse sentido, o Górgias é emblemático
do confronto, decisivo na obra platônica, entre um ‘paradigma’ retórico, por assim
dizer, e a afirmação da filosofia.

Pode-se, então, concluir que a estrutura dinâmica e a alternância de temas, que se
verifica em todo o Górgias, de fato lhe conferem uma estrutura dicotômica. Todavia, tal
dicotomia se define em outros termos e não na oposição parcial, e mais facilmente
perceptível, entre retórica e moral, mas na oposição entre retórica e filosofia. Esta
oposição possui um alcance ético-antropológico, na medida em que seus termos
representam gêneros de vida divergentes. O Górgias irá evidenciar a necessidade de se
fazer uma escolha entre eles, como também examinar as conseqüências desta opção.

1.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esperamos que as considerações apresentadas justifiquem a importância
atribuída ao tema da retórica no Górgias. Se considerarmos que a dicotomia
fundamental que organiza o diálogo é a oposição entre filosofia e retórica, uma série de
questões, relativas ao encadeamento do Górgias, à distribuição dos temas e à
organização formal do diálogo, poderão ser resolvidas. À luz desta oposição, podemos
reconhecer com certa facilidade a unidade e organicidade temática do diálogo, de uma
maneira compatível com sua estrutura pendular16. Esta oposição nos permite, ainda, apreender a razão das várias pausas que contêm explicações metodológicas e que
ressaltam a oposição entre ‘macrologia’ e ‘braquilogia’. Além disto, ela é coerente com
o objetivo do diálogo, explicitado em 500b. De um ponto de vista mais genérico,
relativo ao conjunto da obra platônica, o conflito dialética-retórica é compatível com a
oposição às idéias sofísticas, que está presente na maioria dos diálogos de Platão.



1 O comentário de Auguste Diès nos parece um bom exemplo desta tendência: “En ce triumphe de l’ eiko/j et de la do/xa, le Platonisme, avant de naître, faisait figure de vaincu. Nous savons quelle fut la défense de Platon. Ce fut une vigoureuse attaque. Le Gorgias est resté la plus éloquente protestation en faveur de la justice et de la verité que une plume païenne ait pu écrire (...) Après ce long duel entre la philosophie et la rhétorique, on ne s’attend guère à trouver, sous la plume de Platon, un véritable traité de rhétorique. (...) C’est la transformation d’une rhétorique fondée sur la do/xa en rhétorique fondée sur l’e)pisth/mh: c’est une transposition du rhétorisme en Platonisme et, quel que soit le nombre des motifs rhétoriques emprutés à Gorgias ou à d’autres, ils sont tous exhaurées, transposés au ton majeur de la philosophie platonicienne. La philosophie a dû, pour conquérir sa place au soleil, livrer une guerre acharnée à toutes les rhétoriques: judiciaire, sophistique, éristique” (DIÈS, A. Autour de Platon: essais de critique et d'histoire. Paris: Gabriel Beauchesne, 1927, p. 405-8).

2 Os diálogos são homônimos a alguns de seus personagens. Com o intuito de distingui-los, mencionamos os títulos dos diálogos em itálico. Dentre as edições do Górgias que consultamos, a tradução que nos pareceu mais conveniente foi a de Croiset, e por isso preferimos utilizá-la como referência para nossas citações. Para o confronto com texto mestre, trazemos a versão francesa em rodapé, indicada por CR, seguida da numeração da página correspondente. Para o Fedro e outros diálogos de Platão que eventualmente possam ser mencionados, utilizaremos também a edição da Belles-Lettres.

4 Um bom exemplo é o comentário de PLEBE, A., EMANUELE, P. Manual de Retórica. Trad. E.
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1992., p. 17: “O Górgias de Platão sancionou, pela primeira vez na história do pensamento, o divórcio entre filosofia e retórica”.

5 A esse respeito, veja-se o comentário de Vicaire: ”La rhétorique est attaquée par Platon dans la mesure oú elle peut être considèrée comme une partie de la sophistique, une partie spécialement brillant et prestigieuse: les succès des oratoires des sophistes connus, les services que leurs cités demandent à ces virtuoses, les sommes considérables qu’il gagnent en donnant des leçons, tout cela montre assez dans quelle estime les Grecs tiennent l’art de la parole, et l’art d’enseigner à bien parler” (VICAIRE, Paul.

6 O subtítulo do Górgias, mantido na versão de Croiset, ‘sobre a retórica ou refutativo’, reitera ou mesmo sugere leituras estigmatizantes do diálogo. Todavia, os subtítulos dos diálogos raramente são fiéis à sua problemática de interesse; Cf. GOLDSCHMIDT, Victor. Les dialogues de Platon; estructure et methods dialectique. Paris: Presses Universitaires de France, 1970, p. 26. Este parece ser o caso do Górgias, cujo subtítulo limita a temática do diálogo que seria a relação entre retórica e eudaimonia, ao ataque à retórica sofística, como observou Dodds (op. cit., p. 1).

8 O primeiro discurso de Sócrates é composto em claro paralelismo com o discurso de Lísias. Este
paralelismo torna-se evidente se atentarmos para vários aspectos, nos quais o discurso de Lísias e o de Sócrates se assemelham, a saber: os dois discursos são do gênero epidítico, Sócrates reincide sobre o tema sofístico do amor sem amor, a premissa assumida também é a mesma: Eros é associado ao apetite

9 É importante ressaltar, desde já, que a autêntica retórica do Górgias não possui a mesma extensão em sua aplicação que no Fedro, onde a tarefa da retórica é dar expressão persuasiva às verdades filosóficas,

10 Para os problemas na interpretação do Górgias nos orientamos pelo artigo de BABUT, D. “Les
procédés diatectiques dans le Gorgias et le dessein du dialogue”, em Revue des Ètudes Grecques. Paris: Belles-lettres, tome CV, pp. 59-110, janeiro-março, 1992, p. 59-110, e também pelo comentário de Guthrie ao diálogo GUTHRIE, W.K.C., History of greek philosophy: Cambridge, Cambridge University
Press, 1962, vol. IV, p. 298-299.

11 Sobre a peculiaridade da estrutura dinâmica do Górgias, Cf. DODDS, E.R.. Gorgias. A revised text with introduction and commentary by E. R. Dodds. Oxford: Claredon Press, 1959, p. 3: “The moviment is not that of a pendulum but that of an ascending spiral, where at each fresh turn of the road we can see farther than before.”

12 A primeira passagem reproduzimos na íntegra: “Tu m’as reproché, Calliclès, l’objet de mes recherches; mais quoi de plus beau que de rechercher ce que doit être un homme, à quel travail il doit se livrer, et jusqu’à quel point, dans sa jeunesse et dans sa vieillesse?” (CR, p. 168). Quanto ao passo citado logo em seguida: ”Il s’agit de savoir quel genre de vie nous devons adopter (...)” (CR, p. 187).

14 Górgias irá ressurgir na discussão posteriormente com uma função limitada do ponto de vista da
exposição das idéias, mas fundamental do ponto de vista da dialética, pois ele irá interceder inúmeras
vezes a favor do prosseguimento do debate, aplacando os ânimos de seus pupilos quando o debate é
ameaçado pela animosidade. Desta forma, Górgias revela uma superioridade senão intelectual, ao menos
moral, em relação a seus discípulos.

15 Polo é uma figura de pouca repercussão no meio retórico. Platão faz uma rápida referência a Polo no
Fedro 267c. Cálicles é, talvez, uma invenção de Platão. Cf. ROMILLY, J. Les grands sophistes dans l’
Athènes de Péricles. Paris: Editions de Fallois, 1988, p. 212. Segundo esta autora, a hipótese é verossímil,
pois seria pouco estratégico fazer um sofista conhecido defender o imoralismo tão explicitamente, como o
faz Cálicles.

16 Cf. NARCY, 1984, p. 60: ”Le Gorgias, dira-t-on, présente un découpage tout aussi net, puisque Socrate
y affronte un par un trois interlocuteurs, Gorgias, Polos et Calliclès, chacun n’entrant en scène que
lorsque son prédécesseur s’est tue. Mais dans le Gorgias, d’une part il n’y a qu’un seul protagoniste,
Socrate; et d’autre part chaque nouvel interlocuteur reprend la thèse que le précédent n’a pas su défendre,
en sorte que c’est la même discussion qui se porsuit: Calliclès, certes, est plus radical que Gorgias, mais
c’est parce que pour mieux défendre l’opinion de ce dernier il lui faut aller plus au fond des choses et
dévoiler dans toute son ampleur l’opposition entre les finalités de la rhétorique et l’idéal défendu par
Socrate. Symétrique de la constance de Socrate, la thèse reste la même tandis que se relayent ses
défenseurs: il n’est pas difficile de percevoir l’unité du dialogue.”